Fabiana Esperidião da Silva

“Mãezinha, você já tomou café?”, Fabiana perguntou à mãe Ivanise na manhã do dia 23 de dezembro de 1996. Ela limpava a casa quando recebeu a pergunta seguida de um beijo e um abraço. Mesmo já tendo tomado café, aceitou o convite. Ivanise se refere ao episódio como o último ato de carinho da filha antes do seu desaparecimento. “Eu acordei no dia que ela desapareceu muito triste, com aquele aperto no coração e uma vontade de chorar sem saber porque eu estava sentindo aquilo”, ela relata.

Como a maioria das famílias, a de Ivanise se preparava para o Natal e para o aniversário de Fabiana, que completaria 14 anos em poucos dias. Ivanise a descreve como uma menina inteligente e muito carinhosa. O berço que havia sido comprado quando Fabiana era bebê vivia de canto, rejeitado pela menina, que preferia dormir na cama, próxima da mãe. Fagna, a irmã mais nova, costumava puxar o saco da irmã pelo jeito meloso da irmã, mas ela não ligava.

Naquela noite de quinta-feira, uma chuva forte caía sobre São Paulo. Ivanise chegou do trabalho às 8h50, menos de uma hora depois de Fabiana ter saído para a casa de uma amiga, segundo contou sua irmã. Ivanise esperou a chuva enfraquecer para buscar a filha na casa que ficava a poucos metros de distância da sua. Quando chegou lá, porém, se deparou com a notícia de que a filha já tinha ido embora.

Em pouco tempo, os vizinhos se uniram para procurar a menina. Desesperada, Ivanise buscou pela filha até as 2 horas da manhã, quando decidiu pedir a ajuda da polícia. O primeiro delegado que a atendeu recomendou que ela esperasse 24 horas para realizar o boletim de ocorrência. Ao ser questionado sobre essa decisão, o delegado disse à Ivanise que a filha deveria estar com algum namoradinho e que adolescentes sempre saem sem avisar os pais para ir para a balada. “Ele disse pra eu voltar pra casa, que até o dia amanhecer ela já teria voltado. Já se passaram 24 anos e eu estou esperando esse dia chegar”, conta Ivanise.

Quando Fabiana desapareceu, a lei 11.259, que determina a investigação imediata em caso de desaparecimento de crianças e adolescentes ainda não existia. Ela foi criada somente em  em 30 de dezembro de 2005. Antes disso, a espera de 24 a 48 horas para o começo das buscas era comum, o que diminuía as chances de encontrar pistas que determinassem o paradeiro da vítima. Apesar da mudança, a lei ainda não favorece adultos e, em alguns casos, a único procedimento é o boletim de ocorrência, sem investigação.

“Eu voltei no dia seguinte e tinha uma delegada ainda mais arrogante que disse que eu tinha que esperar 24 horas, e eu disse que já tinha ouvido esse papo”. Mesmo com o boletim feito após muita insistência, as buscas ainda demoraram para se iniciar. Uma sucessão de condutas errôneas acabaram dificultando as buscas por Fabiana e podem ter interferido drasticamente nas chances de encontrá-la. “A delegacia é o último lugar que você vai. Quando você vai lá, você já esgotou as suas buscas. Ao invés de te acolherem de forma humanizada, eles te tratam de forma desrespeitosa, discriminatória. Se é menino, ou está envolvido com as drogas ou foi pra balada. Se é adulto, solteiro, está envolvido com o crime. Se é casado, foi embora com a amante. Então para cada caso, para cada idade, eles já tem opinião formada.”.  

Ivanise começou então uma rotina exaustiva de busca incessante por três meses. De dia, ela visitava o IML e procurava o rosto da filha nas fotos. Hoje em dia o IML possui outro sistema de identificação, mas na época, um álbum de fotos era entregue à Ivanise para que ela pudesse reconhecer se a filha se encontrava naquelas fotos. Caso contrário, ela precisava voltar novamente em dois dias, pois o IML só ficava com o corpo durante 72 horas, após esse período o indivíduo é enterrado sem identificação. “Aquele cheiro do IML é uma coisa horrenda. Eu vi mulheres e meninas assassinadas das formas mais cruéis possíveis”, relata.

Durante a noite, Ivanise ia às ruas e frequentava os bairros da Sé, Anhangabaú, Cracolândia e outras áreas do centro de São Paulo em busca da filha. “Eu amanhecia o dia na rua, isso foi me degradando fisicamente e psicologicamente, até que um dia eu não consegui ficar mais de pé. Fiquei 57 dias assim, até que meu organismo não conseguiu mais”. Desidratada e com um grau de desnutrição grande, Ivanise foi parar no hospital. “Eu queria ficar acordada. Eu só tomava café preto e fumava um cigarro atrás do outro, se eu tentava comer eu vomitava sem ter nada no estômago. Eu pensava “como eu vou comer sem saber se minha filha está comendo?”.

Ivanise evitava dormir com medo de que o telefone ou a campainha tocassem e ela não ouvisse. “Um dia eu pedi pra deus, falei “senhor, eu não aguento mais. Faz uma troca comigo. Leva-me e traz a minha filha”. Falei com revolta, com raiva, mas na mesma hora eu senti um arrependimento muito grande e pedi que deus me mostrasse uma forma, seja ela qual fosse, de eu poder esperar pela minha filha até a hora que ele achasse que eu estivesse preparada para encontrar ela”.

Ciente da situação, uma amiga de Ivanise contou para ela sobre uma instituição no Rio de Janeiro que ajudava mães de filhos desaparecidos, as Mães de Cinelândia. Algumas semanas depois de cadastrar sua filha, Ivanise foi convidada para a gravação de um episódio especial da novela Explode Coração, da Globo, que recrutou diversas famílias com entes desaparecidos para divulgar a causa em rede nacional. “Eu gravei meu depoimento e pensei “eu vou encontrar minha filha porque meu depoimento vai passar em uma novela da Globo em um horário nobre”. Eu voltei com uma expectativa muito grande.”

As gravações aconteceram em um sábado e a exibição ocorreu na quinta-feira da semana seguinte. No dia seguinte da transmissão, Ivanise foi procurada por 2 jornalistas e aproveitou a oportunidade para desabafar sobre a negligência policial que vivenciava. “Contei sobre aqueles 3 meses de busca solitária que eu investigava o desaparecimento da minha filha e passava para os investigadores. A polícia não tinha feito absolutamente nada. E, no último parágrafo, falei que se alguém tivesse passando pela mesma situação poderia me ligar e coloquei o telefone à disposição. Não sei se foi a melhor ou a pior coisa que eu fiz, só sei que no dia seguinte meu telefone começou a tocar por volta das 8 horas da manhã e ele não parou mais até hoje”.

Os telefonemas eram de pais, mães, irmãos, filhos e parentes que tinham entes desaparecidos. Ivanise começou a receber também muitas ligações de rádios, produções de TV, revistas e outros jornais interessados em sua história. As pessoas envolvidas na causa perguntavam sobre a possibilidade de uma reunião e, inspirada pelas Mães da Cinelândia, que se reuniam nas escadarias da Cinelândia, ela marcou o encontro nas escadarias da Praça da Sé, o marco inicial de São Paulo e o principal palco de protestos, manifestações e reivindicações da sociedade nos anos 90. Diversos órgãos de imprensa cobriram o evento, que reuniu mais de 100 pessoas e passou a se referir ao grupo como Mães da Sé.

Nos meses seguintes, algumas das famílias envolvidas conseguiram encontrar os entes desaparecidos, o que alimentou a expectativa de Ivanise. Ela encabeçou a frente do projeto Mães da Sé, que se tornou uma organização renomada que ajuda família de pessoas desaparecidas e hoje luta contra a negligência desses casos. “O desaparecimento é uma causa invisível aos olhos da sociedade, invisível aos olhos do poder público, que não faz absolutamente nada. O próprio Estado acaba produzindo o desaparecimento através dos seus agentes policiais.”.

Ivanise lida com diversas famílias e vê de perto a situação de jovens desaparecidos após encontros com a polícia. “Em muitos dos casos em que vítimas foram abordadas pela última vez por policiais militares, ela é encontrada morta, principalmente se ela tiver tatuagem e for negra”.


“Lei é o que nós mais temos. Nós temos a lei de busca imediata, que é voltada só para criança e adolescente. Ela existe há 14 anos. Agora me pergunta se a lei é cumprida. Não é. Você não tem que esperar tempo algum para ir à delegacia registrar a ocorrência do desaparecimento”, afirma Ivanise.

Por trás do desaparecimento pode existir o crime de tráfico de pessoas, que é o 3º maior crime no mundo e só perde para o tráfico de drogas e armas. 70% das pessoas traficadas no mundo são mulheres e crianças. “Além do tráfico de pessoas, existe o tráfico de órgãos,  crimes de ocultação de cadáver. exploração sexual de mulheres e crianças. Também existe a exploração de travestis, que vêm principalmente dos estados do Pará e da Amazônia para São Paulo e são enganados com a promessa de ganhar muito dinheiro fazendo programa e conseguir fazer a mudança física. Eles vivem em cárcere, moram em casas onde são espancados. E a família fica lá, procurando por eles como desaparecidos. Existe uma série de crimes que acontecem por trás do desaparecimento”.

“Eu peguei 14 anos de investigação do desaparecimento da minha filha. E desses 14 anos não tinha 300 páginas de investigação. Todos os procedimentos que eles fizeram, eu fiz e continuo fazendo. Os procedimentos tinham 3 vias e eles sequer me chamaram pra dizer "olha, dona Ivanise, a gente fez isso, isso e isso". Em 24 anos de desaparecimento da minha filha, eu fui chamada naquela delegacia 3 vezes. Eu estou me preparando psicologicamente pra ir lá fazer 2 coisas: levar a foto dela para fazer a progressão de idade e pedir uma cópia da investigação dela”.

Ivanise conta que o sonho da filha era trabalhar para ter as próprias coisas. Na época, a idade legal para poder trabalhar era a partir dos 14 anos. Sendo assim, o plano de Ivanise era tirar todos os documentos da filha quando ela completasse 14 anos. “Se eu quiser uma certidão de óbito da minha filha hoje, o Estado me dá, porque para o estado a minha filha não existe mais. Passou de 20 anos é considerado morto para o Estado. Eu posso pegar uma certidão de óbito, mas eu não vou fazer isso, porque se minha filha está morta, cadê o corpo? Cadê os restos mortais dela? O Estado me deve essa satisfação, me deve essa resposta”.

Com exceção de sua certidão de nascimento, nenhum outro documento foi emitido no nome de Fabiana. “Se a minha filha foi assassinada, eu nunca vou saber, porque ela não tinha registro. A gente acha que a desgraça só bate na porta dos outros, a gente nunca acha que a desgraça bate na nossa porta”, lamenta a mãe. “Mas eu continuo esperando. Eu tenho certeza que a minha filha tá em algum lugar desse planeta e a hora que eu menos esperar, deus vai trazer minha filha de volta. O meu coração de mãe me diz que a minha filha está bem”.



Carlos Eduardo dos Santos Nascimento

"A última vez que conversei com o meu filho foi no dia 24 de dezembro, na véspera de Natal, ele me ligou desejando um feliz Natal", conta o segurança Eduardo Aparecido do Nascimento, o pai de Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, apelidado por amigos e familiares de Cadu. Naquele telefonema, Eduardo combinou com o filho de passarem a virada do ano juntos em uma chácara. Três dias depois da conversa, Cadu desapareceu. "Acabou o final de ano de todo mundo, todo mundo ficou na correria procurando ele lá no ano novo. Estamos até agora procurando ele e não temos notícia de nada".

Segundo relatos de testemunhas, no dia 27 de dezembro de 2019 Cadu estava em um bar com mais quatro amigos no bairro chamado Jardim São Camilo, em Jundiaí, quando policiais militares os abordaram. Após revistarem os rapazes, Cadu, o único negro do grupo, foi algemado e levado sozinho na viatura pelos policiais. Desde então, o paradeiro de Cadu é desconhecido.

Os familiares começaram as buscas de prontidão. "Quem começou a fazer buscas no meio de mato, em represa, em todos esses lugares, fomos nós da família, porque à princípio a polícia não foi a lugar nenhum", relata Eduardo. O boletim de ocorrência foi feito após as buscas iniciais dos familiares, no dia 28 de dezembro, mas somente no dia 2 de janeiro as investigações da DIG (Delegacia de Investigações Gerais) tiveram início e o delegado responsável abriu um Inquérito para apurar os fatos.

Eduardo conta que no dia, testemunhas relataram que os policiais que haviam levado seu filho pertenciam ao 49º Batalhão da Polícia Militar do Interior. "Cheguei lá conversei com um policial, ele disse para mim que não teve abordagem nenhuma nesse horário e nesse dia no Jardim São Camilo, que não tinha passado nada pelo rádio referente a essa abordagem. Nós começamos a ficar preocupados, porque todo mundo falou que tinham pegado ele de repente os caras falam que não teve abordagem nenhuma".

Quando o caso começou a ganhar repercussão, programas como o Cidade Alerta começaram a noticiar o nome dos policiais que patrulharam o bairro no dia do desaparecimento: o sargento Anderson Torres, o soldado Julio Cesar de Lima e o soldado Denilson Lucas Diniz. “No quarto dia a mãe dele resolveu procurar a imprensa, foi onde apareceu que realmente os policiais haviam estado no local, que haviam feito a abordagem”. Em depoimento, no entanto, os policiais negaram ter abordado ou visto Cadu.

O caso passou a ser investigado pela Corregedoria da Polícia Militar e a Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo e, assim como a família de Felipe Damasceno, a família de Cadu se queixa por não receber informações suficientes. “A gente não recebeu atualização nenhuma, tudo que é dito é que está sob sigilo da polícia militar, que a polícia militar não passa informações, e assim vai indo, é assim que funcionam as coisas. A gente tá de braços cruzados, vai fazer um ano e vai continuar desse jeito. Logo logo, da maneira que vai indo, ele arquivam o caso por falta de provas, por falta de testemunhas, e é mais um desaparecido que some, que ninguém sabe o aconteceu”.

Eduardo conta que não imaginava que existia um número tão grande de pessoas desaparecidas no país. Desde o sumiço do filho, ele entrou em grupos sobre o assunto nas redes sociais. “Tá todo mundo sumido, não tem explicação do sumiço das pessoas. É como se de repente abrisse um buraco, jogasse dentro e você não sabe onde foi parar essa pessoa. Infelizmente a justiça do nosso país é lenta, demora muito para começar a investigar um caso. Quando vai investigar o caso, já aconteceu coisa pior”.

O caso de Cadu conta com uma peça chave: as testemunhas. “O testemunho é vital para as investigações e para o processo penal”, conta o advogado da família, Wesley Portugal. “A única prova que se tem até então dessa abordagem é simplesmente a palavra das pessoas que viram. Não tem filmagem, não tem nada. Para que se inicie um processo, uma das condições da ação penal é a justamente o que a gente chama de justa causa, é de fato uma justa causa para o estado perseguir alguém. Para isso é preciso que tenha, no mínimo, indícios de autoria e materialidade”.

O advogado explica que indício de autoria é quando há indício de quem é o autor de determinado delito. Já os indícios de materialidade seriam os rastros do crime. No caso de Carlos Eduardo, há indícios de provável autoria (a equipe policial), mas não possui materialidade. “Até então não foi encontrado nenhum corpo, nem alguma coisa que pudesse comprovar, por exemplo, uma das hipóteses: que Carlos Eduardo teria sido morto”. Por isso, a prova testemunhal é fundamental. “Se não tem nenhum tipo de prova, e se de repente você consegue um determinado número de pessoas que realmente viu, daí você consegue realmente pelo menos criar os indícios de autoria e de materialidade”.

Isso não significa que, caso as testemunhas colaborassem para a versão de que os policias teriam levado Cadu, os suspeitos seriam condenados. “Quando os testemunhos são coerentes, se encaixam, aí você tem pelo menos a justa causa para prosseguir com processo penal. Se os suspeitos forem condenados ao final ou forem absolvidos por falta de prova ou não, pelo menos os testemunhos seriam importantes para que se iniciasse o processo penal. Para que se denunciasse e pudesse fazer uma apuração melhor”.

No caso do Carlos Eduardo, as testemunhas principais se negaram a depor. “As testemunhas que estavam com ele morrem de medo da polícia”, conta o pai de Cadu. ”Se a gente chegar neles e conversar, ou outra pessoa tocar no assunto, eles até falam. Mas se falar “vamos na delegacia”, eles falam “não, na delegacia eu não vou não, esses polícia são muito ruim, eles vão querer se vingar da gente”.

Segundo Wesley, isso dificulta o processo de investigação do caso do Cadu. “Quando as pessoas se negam a falar por conta de pressão ou medo de ameaça, realmente fica difícil, porque a única coisa que tem são essas pessoas, são essas testemunhas que presenciaram, mas se elas não falarem os indícios mínimos para prosseguir com uma ação penal”.

No início da investigação, os policiais investigados foram afastados do serviço nas ruas, mas Eduardo conta que ouviu boatos de que eles teriam voltado a trabalhar normalmente e teriam sido transferidos para outra região.

Segundo Eduardo, no dia 4 de janeiro uma linha de celular foi habilitada no nome de Carlos Eduardo em São José dos Campos. ”Essa linha ficou acessível durante três meses, nós levamos para a DIG, que também foi investigar, aí o telefone foi desativado”. Em maio, um auxílio emergencial também foi sacado no nome de Cadu em São José dos Campos. “A DIG foi até São José dos Campos, trouxe a pessoa para cá, colheu o testemunho e a pessoa disse que desconhece esse fato, que ela não mexeu com auxílio emergencial, que não fez nada e também não tem esse número de telefone”.

Até agora essas pistas não resultaram em algo concreto. “A Caixa Econômica disse que para a gente tentar fazer alguma coisa precisa entrar com pedido judicial, porque é uma quebra de sigilo bancário. A gente quer saber agora para poder ir até o local e ver se o meu filho está lá, ou se de repente estão usando os documentos do meu filho”.

Eduardo conta que, no dia do desaparecimento, Cadu não estava carregando seus documentos. Nenhum pertence de Cadu foi encontrado nas investigações. “Depois das cinco horas da tarde, quando ele foi abordado, o chip do celular dele não deu mais sinal. Disseram que a viatura de polícia infelizmente não tinha GPS, que justo essa que estava aqui em Jundiaí, nesse dia, nesse caso, não tinha GPS. É muito falho”. Para Wesley, “é um caso típico de desaparecimento forçado, tal como os resquícios da ditadura civil militar. Esse tipo de situação que já ‘comum’, não deveria mas é comum”.

Eduardo se sente frustrado com a situação e a falta de informações. “A gente não pode duvidar de nada. Como foi deixado bem claro, ele era o único negro que estava no meio. O resto era tudo branco, ele foi o único que foi colocado dentro de uma viatura e foi o único que sumiu. A gente não sabe o que aconteceu, se de repente ele foi confundido com alguém, se de repente ele foi pedido por alguém, a gente não sabe, infelizmente ninguém tem coragem de dar a cara e fala assim “eu vi, pegaram ele, puseram dentro da viatura, levaram ele e sumiram com menino”. Ninguém tem coragem de ir lá e falar porque todo mundo tem medo dos policiais, infelizmente é o que acontece”.

Em março a família sentiu a dor aumentar, foi o aniversário de 21 anos do rapaz. O pai conta que Carlos tinha planos de terminar os estudos e entrar em uma faculdade. “Eu falava para ele, ‘filho, termina seus estudos então que como o pai trabalha numa faculdade, o pai consegue bolsa para você’, aí aconteceu o que aconteceu. A gente tá nessa situação, não tem resposta nenhuma”.


Felipe Damasceno Machado

Era uma segunda-feira, dia 3 de novembro de 2008, quando Felipe Damasceno Machado saiu de casa para ir à casa de um colega na Vila Natal, zona sul de São Paulo. O adolescente, na época com 17 anos, avisou antes de sair com sua moto. Lucineide da Silva Damasceno estava acostumada às saídas do filho e tinha um relacionamento de confiança, apenas pediu para que ele não demorasse. Felipe jamais voltou e até hoje sua localização segue indeterminada.
A família já tinha dado falta de Felipe e havia começado uma busca por hospitais, delegacias e presídios quando soube que Vinícius, o amigo que Felipe havia ido visitar, também havia desaparecido. “Aí a gente pirou, surtou. Duas pessoas sumidas? Eu achava que podia ter sido algum acidente de moto”, conta Lucineide.
Um grande grupo de motoqueiros se reuniu para ajudar nas buscas e assim surgiu a primeira pista. “Motoqueiro você sabe, é muito unido, principalmente na madrugada. Se tem um parado, eles vão lá ver o que tá acontecendo. Um rapaz disse que viu uma abordagem da GCM (Guarda Civil Metropolitana) com um rapaz com as características do Felipe todas. A roupa, a moto... Porém o rapaz parou, perguntou se estava tudo bem e, segundo ele, os policiais falaram ‘não, é só uma abordagem comum, normal’, aí ele foi embora. Ele não pegou o número da viatura, ele não pegou o número da placa de moto. Mas se a moto estava parada do lado, onde que é estava esse tal de Vinícius que desapareceu também?”
“Partimos para delegacia. Foi difícil porque as delegacias há 12 anos atrás não tinham a inteligência que tem hoje, a gente sabe que um boletim de ocorrência se faz na hora que a pessoa desaparece. Quando ele desapareceu, tinha aquela história ‘espera 24 horas porque pode estar na casa de um amigo, da namorada’, e eu não consegui fazer o boletim rápido”. Em 2008, a lei 11.259 já estava em vigor. Mesmo assim, a prática de se negar a realizar o boletim é um relatado comumente pelas famílias que possuem entes desaparecidos. A prática, no entanto, configura crime de prevaricação, quando o funcionário público não cumpre com suas funções, e deve ser denunciada.
Além disso, Lucineide relata que houve abuso de poder. “Houve um bate-boca e eles não quiseram deixar eu sair da delegacia, me xingaram de vagabunda, de um monte de coisa”. A delegacia também negou a abordagem da GCM. “A gente levou o caso para corregedoria, está até hoje em sigilo. Segundo o pessoal da delegacia que foi chamado, só prestam depoimento em juízo, do outro lado eu não tenho provas concretas. Como é que a gente vai provar que houve essa abordagem? Teria que ter pelo menos o número da viatura, qualquer coisa”.
Dois meses depois do desaparecimento, a moto de Felipe foi encontrada. “Eu fui informada por um presídio de Diadema que a moto estava no pátio da delegacia onde eu fiz o boletim de ocorrência. Não consegui ver essa moto até hoje, não foi feita a perícia, não foi feito nada, sabe? Tudo em aberto”. Lucineide reclama da falta de apuração sobre as poucas pistas do caso de Felipe. “Por que a moto foi encontrada e eles não avisaram, não fizeram nada? Teria que ter feito uma perícia, ter dito onde foi encontrada essa moto para que a gente pudesse fazer uma investigação maior, ver se o corpo não estaria por ali, pelas redondezas. Tem alguma coisa errada, deus ajude que não seja deles terem matado meu filho”.
Lucineide levou o caso para o DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa) e agora o ele está sob os cuidados do Ministério Público. “Ao invés do DHPP ligar para dar alguma informação, eles ligam para saber se eu tenho alguma novidade. E não é assim só com Felipe não, são com vários”. Para ela, a possibilidade de arquivarem o caso por falta de provas é revoltante. “Se fechar [o caso] eu dou um jeito de abrir. Como é que vai arquivar um caso sem resposta? Meu filho não era, mas mesmo que ele fosse um bandido, um traficante, que ele fosse o que fosse, ele tem o direito dele a ser cumprido e o estado tem o direito de cobrar dele o que ele fez de errado, não de sumir com ele”.
Assim como o caso de Carlos Eduardo, baseado em relatos das testemunhas, é possível que o desaparecimento de Felipe tenha o envolvimento de autoridades policiais. A ideia assusta Lucineide, mas ela não descarta a possibilidade. “Teve uma moça no DHPP que falou para mim com todas as letras que quando a polícia quer, ela mata. Amarra uma pedra no pescoço, joga no primeiro riacho que tiver e ninguém mais acha. São coisas que você acha um absurdo de ouvir, e ao mesmo tempo você acha um absurdo que aquilo seja real. É real”.
Ela conta que quando levou o caso para a Corregedoria e que a testemunha que presenciou a abordagem da Guarda Municipal Metropolitana foi ouvida e não mudou seu depoimento. Além da moto, único pertence achado na investigação, a possibilidade de que a abordagem tenha acontecido com Felipe é a maior pista do caso. “Se a GCM não tem envolvimento, por que houve omissão? Se houve omissão, por que não dizem quem foi a pessoa que eles abordaram? Se não aconteceu isso ou se o menino que foi visto não era o Felipe, eu não sei, só sei que a moto foi encontrada, e ele? Está onde?”
Desde então, a busca de Lucineide é contínua. Ela seguiu procurando o filho pelas ruas de São Paulo e entrando em contato com locais que poderiam ter informações, como hospitais, presídios e IML. “Na época me tornei uma andarilha de rua. Procurar pessoas embaixo de viaduto não é brincadeira, é muita gente. Ou você se joga na rua para procurar, ou você não tem como encontrar. Você encontra muitos moradores de rua em situação absurda”.
Há alguns anos, ela recebeu uma informação de que seu filho podia estar vivendo como andarilho. “Fiquei muito tempo na rua, no centro da cidade. Passamos uma bela temporada e nada. As pessoas diziam que viam uma pessoa muito parecida com ele, que andava como se tivesse sem memória. Não lembrava do nome, não lembrava onde morava, não sabia se tinha família, como se estivesse desnorteado. Muita gente disse que era ele, outros diziam que era parecido. Eu não consegui chegar a encontrar esse rapaz”.
A família nunca deixou de procurar por Felipe, mas suas vidas seguiram em frente. Lucineide conta que seus outros dois filhos, Amanda de 31 anos e Anderson de 18 anos, sofreram muito com a falta do irmão. “Onde o Felipe estava, a Amanda estava. Na época ela ficou muito mal, até hoje não consegue falar do assunto, ela só chora. E o Anderson era muito pequeno quando o Felipe sumiu, ele ficava muito triste. Hoje o que mais me deixa triste é ele dizer que não consegue se lembrar do Felipe. Ele fala ‘mãe, não lembro mais do Felipe, lembro de algumas brincadeiras, algumas coisas, mas não lembro mais dele’”, ela conta com pesar.
A relação da família sempre foi de muito afeto. Lucineide relata com carinho as paixões de Felipe por motos e sua fama entre as meninas. “Nós não tínhamos problemas com nada, o problema maior eram as namoradas no portão enchendo meu saco. Era demais. A gente sempre foi muito unido. Ele gostava muito de moto, tinha uma oficina de peças onde ele arrumava pneu, vendia peças para moto, bicicleta, aqui do lado de casa. Saia de casa e ia para lá trabalhar. O mundo dele era aqui, eu pegava no pé para não sair para fora”.
Algum tempo depois do desaparecimento de Felipe, o advogado de Lucineide a apresentou à ONG Mães da Sé. “Eu cheguei lá e eu vi aquela situação, aquele monte de arquivo, de caixa, aquela pessoazinha pequenininha lá longe”, ela relembra com humor a primeira vez que encontrou Ivanise. “Ela falou que ela estava há 12 anos procurando a filha dela e eu entrei em choque. ‘E você vai me ajudar como?’. Até hoje a gente dá risada quando eu lembro disso. Ela disse ‘não sei, a gente vai ter que procurar’, aí eu falei ‘meu deus, a mulher não conseguiu achar a filha dela vai achar o meu?’ Eu entrei em pânico”.
Alguns meses depois, Lucineide passou a participar dos encontros propostos pela ONG. “Fui participando, conhecendo outras mães, fui entendendo o que é o desaparecimento. A gente começou uma tentando ajudar a outra, se apoiando, e assim nós estamos até hoje. Ela é uma irmã que não tenho, porque a gente tá sempre juntas, sempre conversando, tendo ideias, fazendo divulgação de cartazes, televisão... Para mim faz parte da minha família, algumas mães também, a gente tem um convívio, se fala uma, duas vezes por semana. Virou isso a minha vida, uma outra família nada a ver com minha”.
Para ela, o trabalho desenvolvido pelo Mães da Sé é primordial para que as políticas de enfrentamento ao desaparecimento no Brasil sejam cada vez mais aprimoradas. “A ONG tem uma importância muito grande porque a divulgação é a chave. É o único espaço que a gente tem. A gente já encontrou bastante gente com essas divulgações, mas ainda não chegou a minha vez, nem a da Ivanise, nem a de outras”. Enquanto sua vez não chega, Lucineide se recusa a abandonar a esperança. “Guardo tudo. A roupa dele continua do mesmo jeito, moro na mesma casa. Para eu sair, só se encontrar ele. Aí eu penso em mudar. Aqui é o lugar que eu acho que ele pode voltar”.


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